Para encerrar a fase de postagens intimistas, da descoberta da alma feminina, reproduzo a morte de uma das personagens mais complexas, fascinantes e femininas da literatura universal. Com peculiar maestria, Flaubert soube, como poucos, expressar os sentimentos, dos mais nobres aos mais vulgares, que percorrem a alma de uma mulher.
É um tanto lúgubre, confesso.
Ler as linhas seguintes é uma experiência de quase morte. Morrer deve ser alguma coisa bem próxima a isso...
Com vocês, o suicídio de Madame Emma Bovary!
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A chave girou na fechadura e Emma foi direto à terceira prateleira, tal a justeza com que a memória a guiava, pegou no frasco azul, destapou-o, enfiou a mão dentro dele, tirou um punhado de pó branco e pôs-se imediatamente a comê-lo.
-Pare! - exclamou o rapaz, lançando-se a ela.
-Cala-te. Pode vir alguém.
O rapaz estava desorientado, queria gritar.
- Não diga nada, que tudo recairá sobre teu patrão!
Depois, voltou-se, subitamente tranquila e quase que com a serenidade de um dever cumprido.
[...]
Um sabor amargo que lhe veio à boca despertou-a. Entreviu Charles e fechou de novo os olhos.
Emma analisava-se curiosamente, para ver se sofria ou não. Mas não! Por enquanto, nada! Ouvia o bater do pêndulo, o crepitar do fogo e a respiração de Charles, que se conservava em pé, à cabeceira.
"Que coisa insignificante é a morte!", pensava ela
. "Vou adormecer de novo e tudo acabará!"
Bebeu um gole de água e voltou-se para a parede.O insuportável sabor de tinta de escrever continuava.
-Tenho sede!...Tenho muita sede!...-suspirou ela.
-Que tens tu afinal? - disse Charles, dando-lhe um copo.
-Não é nada...Abre a janela...estou sufocada!
Às oito horas, reapareceram os vômitos.
Charles observou que no fundo da bacia ficava uma espécie de areia branca agarrada à porcelana.
[...]
Então, delicadamente, e acariciando-a, passou-lhe a mão pelo estômago. Emma soltou um grito agudo. Charles recuou assustado.
Depois Emma começou a gemer, a princípio muito fracamente. Sacudiam-lhe os ombros grandes arrepios e tornou-se mais branca que o lençol em que cravava as unhas. O pulso irregular era agora quase insensível.
Tinha orvalhado de gotas de suor o rosto azulado, que parecia como que coalhado pela exalação de um vapor metálico. Batia os dentes, os olhos dilatados relanceavam-se vagamente em torno e só respondia a todas as perguntas com acenos de cabeça; chegou mesmo a sorrir por duas ou três vezes. Pouco a pouco, seus gemidos foram-se tornando mais fortes. Soltou um uivo surdo; dizia que estava melhor e que daí a pouco se levantaria. Mas as convulsões recomeçaram; e exclamou:
-Ah! é horrível, meu Deus!
[...]
Emma sonhava haver terminado com todas as traições, baixezas e inúmeras ansiedades que a torturavam. Já não odiava ninguém: uma confusão de crepúsculo empanava-lhe o pensamento e, de todos os ruídos da terra, não ouvia senão o intermitente lamento do seu pobre coração, meigo e indistinto, como o último eco de uma sinfonia longínqua.
[...]
Emma não tardou a vomitar sangue. Os lábios apertaram-se-lhe mais. Tinha os membros crispados, o corpo coberto de manchas escuras, o pulso resvalava sob os dedos como uma linha tensa, como uma corda de harpa prestes a quebrar-se.
Depois, começou a gritar horrivelmente. Amaldiçoava o veneno, invectivava-o, pedia-lhe que se apressasse e repelia com os braços inteiriçados tudo o que Charles, mais agonizante que ela, queria obrigá-la a tomar.
[...]
O padre ergueu-se para pegar o crucifixo; então ela estendeu o pescoço, como quem tem sede, e, colando os lábios ao corpo do Homem-Deus, depôs nele, com toda a sua força expirante, o maior beijo de amor que jamais dera. Depois o padre recitou o Misereatur e o Indulgentiam, molhou o polegar direito no óleo e começou a unção; primeiro sobre os olhos, que tanto tinham cobiçado todas as suntuosidades mundanas; depois dobre as narinas, gulosas de brisas tépidas e de perfumes amorosos;depois sobre a boca, que tanto se abrira para a mentira, que tanto gemera de orgulho e gritara de luxúria; depois sobre as mãos, que se deleitavam com os contatos suaves, e, finalmente, na planta dos pés, outrora tão velozes quando corriam a saciar os desejos e que agora nunca mais tornariam a caminhar.
Com efeito, Emma relanceava os olhos em torno, lentamente, como quem desperta de um sonho; depois, com voz nítida, pediu o espelho e esteve inclinada para ele algum tempo, até que dos olhos se desprenderam duas grossas lágrimas. Em seguida, soltou um profundo suspiro e deixou cair a cabeça no travesseiro.
No mesmo instante, começou-lhe o peito a ofegar rapidamente. A língua saiu-lhe toda fora da boca; os olhos, num movimento contínuo, amorteciam-se como dois globos de lâmpadas que se apagam; e até a julgariam já morta, se não fosse a medonha aceleração do arfar das costelas sacudidas por uma respiração furiosa, como se a alma estivesse aos pulos para se desprender.
[...]
Seguiu-se uma convulsão, que a fez de novo deitar-se. Todos se aproximaram. Emma não existia mais.
Helena fodona!
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