segunda-feira, 31 de maio de 2010

O insuportável sabor de tinta de escrever


Para encerrar a fase de postagens intimistas, da descoberta da alma feminina, reproduzo a morte de uma das personagens mais complexas, fascinantes e femininas da literatura universal. Com peculiar maestria, Flaubert soube, como poucos, expressar os sentimentos, dos mais nobres aos mais vulgares, que percorrem a alma de uma mulher.
É um tanto lúgubre, confesso.
Ler as linhas seguintes é uma experiência de quase morte. Morrer deve ser alguma coisa bem próxima a isso...
Com vocês, o suicídio de Madame Emma Bovary!
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A chave girou na fechadura e Emma foi direto à terceira prateleira, tal a justeza com que a memória a guiava, pegou no frasco azul, destapou-o, enfiou a mão dentro dele, tirou um punhado de pó branco e pôs-se imediatamente a comê-lo.
-Pare! - exclamou o rapaz, lançando-se a ela.
-Cala-te. Pode vir alguém.
O rapaz estava desorientado, queria gritar.
- Não diga nada, que tudo recairá sobre teu patrão!
Depois, voltou-se, subitamente tranquila e quase que com a serenidade de um dever cumprido.
[...]

Um sabor amargo que lhe veio à boca despertou-a. Entreviu Charles e fechou de novo os olhos.
Emma analisava-se curiosamente, para ver se sofria ou não. Mas não! Por enquanto, nada! Ouvia o bater do pêndulo, o crepitar do fogo e a respiração de Charles, que se conservava em pé, à cabeceira.
"Que coisa insignificante é a morte!", pensava ela
. "Vou adormecer de novo e tudo acabará!"
Bebeu um gole de água e voltou-se para a parede.O insuportável sabor de tinta de escrever continuava.
-Tenho sede!...Tenho muita sede!...-suspirou ela.
-Que tens tu afinal? - disse Charles, dando-lhe um copo.
-Não é nada...Abre a janela...estou sufocada!

[...]

Às oito horas, reapareceram os vômitos.
Charles observou que no fundo da bacia ficava uma espécie de areia branca agarrada à porcelana.

[...]

Então, delicadamente, e acariciando-a, passou-lhe a mão pelo estômago. Emma soltou um grito agudo. Charles recuou assustado.
Depois Emma começou a gemer, a princípio muito fracamente. Sacudiam-lhe os ombros grandes arrepios e tornou-se mais branca que o lençol em que cravava as unhas. O pulso irregular era agora quase insensível.
Tinha orvalhado de gotas de suor o rosto azulado, que parecia como que coalhado pela exalação de um vapor metálico. Batia os dentes, os olhos dilatados relanceavam-se vagamente em torno e só respondia a todas as perguntas com acenos de cabeça; chegou mesmo a sorrir por duas ou três vezes. Pouco a pouco, seus gemidos foram-se tornando mais fortes. Soltou um uivo surdo; dizia que estava melhor e que daí a pouco se levantaria. Mas as convulsões recomeçaram; e exclamou:
-Ah! é horrível, meu Deus!

[...]

Emma sonhava haver terminado com todas as traições, baixezas e inúmeras ansiedades que a torturavam. Já não odiava ninguém: uma confusão de crepúsculo empanava-lhe o pensamento e, de todos os ruídos da terra, não ouvia senão o intermitente lamento do seu pobre coração, meigo e indistinto, como o último eco de uma sinfonia longínqua.

[...]

Emma não tardou a vomitar sangue. Os lábios apertaram-se-lhe mais. Tinha os membros crispados, o corpo coberto de manchas escuras, o pulso resvalava sob os dedos como uma linha tensa, como uma corda de harpa prestes a quebrar-se.
Depois, começou a gritar horrivelmente. Amaldiçoava o veneno, invectivava-o, pedia-lhe que se apressasse e repelia com os braços inteiriçados tudo o que Charles, mais agonizante que ela, queria obrigá-la a tomar.

[...]

O padre ergueu-se para pegar o crucifixo; então ela estendeu o pescoço, como quem tem sede, e, colando os lábios ao corpo do Homem-Deus, depôs nele, com toda a sua força expirante, o maior beijo de amor que jamais dera. Depois o padre recitou o Misereatur e o Indulgentiam, molhou o polegar direito no óleo e começou a unção; primeiro sobre os olhos, que tanto tinham cobiçado todas as suntuosidades mundanas; depois dobre as narinas, gulosas de brisas tépidas e de perfumes amorosos;depois sobre a boca, que tanto se abrira para a mentira, que tanto gemera de orgulho e gritara de luxúria; depois sobre as mãos, que se deleitavam com os contatos suaves, e, finalmente, na planta dos pés, outrora tão velozes quando corriam a saciar os desejos e que agora nunca mais tornariam a caminhar.

[...]


Com efeito, Emma relanceava os olhos em torno, lentamente, como quem desperta de um sonho; depois, com voz nítida, pediu o espelho e esteve inclinada para ele algum tempo, até que dos olhos se desprenderam duas grossas lágrimas. Em seguida, soltou um profundo suspiro e deixou cair a cabeça no travesseiro.
No mesmo instante, começou-lhe o peito a ofegar rapidamente. A língua saiu-lhe toda fora da boca; os olhos, num movimento contínuo, amorteciam-se como dois globos de lâmpadas que se apagam; e até a julgariam já morta, se não fosse a medonha aceleração do arfar das costelas sacudidas por uma respiração furiosa, como se a alma estivesse aos pulos para se desprender.

[...]

Seguiu-se uma convulsão, que a fez de novo deitar-se. Todos se aproximaram. Emma não existia mais.


sexta-feira, 14 de maio de 2010

Quando anuncias a hora da partida



Era óbvio. Ele nunca a amaria. Gostava dela um bocado, é verdade. Podia sentir quando ele a beijava. Via seus olhos se revirarem de prazer. A boca cálida quase queimava quando os lábios tocavam o pescoço. Ela permanecia inerte. Era ele quem mandava. Amava-o tanto que não se importava. Mandava no seu corpo, nos seus sentimentos, nos seus pensamentos. Até sua alma pertencia à ele.

Mas é na hora da partida que o sentimento puro aflora e se revela para além das palavras.
É o momento em que o coração perde o compasso, o pulmão implora ofegante, os olhos umedecidos se fecham em derrota, a alma transtornada emudece e se apaga. E o corpo, imóvel, quase desfalece impotente.

Depois da partida, tudo vira silêncio...

Era sempre ele quem anunciava a partida, quem lembrava que era tarde. Era óbvio que seria ele quem a deixaria.

Mas esse era seu papel de homem. Ele era mais forte, mais cruel e egoísta. Ele era o homem e não amava. Ela era a mulher. Apenas uma mulher... Frágil e tosca, refém de si mesma. De forte, só o sentimento.

Quando se viu abandonada, apertou a mão com toda a força. Não era muita, mas se esforçou ao máximo, até sentir as unhas cravarem na pele macia da palma da mão. Parou quando sentiu o sangue escorrer. Queria ter a certeza de que o coração ainda batia...

terça-feira, 4 de maio de 2010

Lágrimas e íons de ferro

Foto das rugas do meu pai


Naquela noite a lua era cheia e estava já bem alta. Uma brisa fresca soprava mansamente, aliviando o calor sufocante.

O dia tinha sido semelhante – para evitar a rispidez do igual – a todos os outros. Pelo menos, a todos os outros dos quais se lembrava com alguma nitidez e que podiam ser classificados como recentes.

A natural nostalgia do passado, somada com a morosidade da vida atual, fazia as lembranças tornarem-se ainda mais doloridas e a angústia uma constante.

A infância e a adolescência passaram com naturalidade. O que não significa que tenham sido menos intensas. Foram naturalmente prazerosas, ingênuas e, até certo ponto, inconseqüentes; mas a vida cria todas as condições para que assim sejam.

“Vontade de largar tudo. Largar tudo e sair correndo.”. Podia imaginar-se com nitidez atravessando a porta, descendo os degraus até o jardim, passaria correndo por entre as árvores, abriria o portão, que rangeria por conta dos anos e dos íons de ferro. Deixaria tudo para trás: jardim, árvores, portão e íons de ferro. A visão era tão nítida que podia quase sentir os pés descalços. Não. Não teria tempo sequer de calçar-se, pisando nos pedregulhos do jardim. E finalmente alcançaria a rua. Todos parariam observando a estranha figura, mas não se importaria e continuaria correndo. A partir daí não ambicionava mais nada. Talvez porque não fosse audaciosa ou corajosa o suficiente para sequer imaginar-se em fuga, quem dirá executá-la.

Era vítima da própria imaginação e o presente tosco podava-lhe as possibilidades, as pretensões, o destino. E os sentimentos iam confundindo-se, fundido-se, até se tornarem um frágil cordão de pequenas emoções previsíveis, que não queria dizer mais nada.

Nesse ponto a idéia da fuga já havia se tornado absolutamente impraticável, absurda. “Até a rua. Vejam só! Até a rua!”. Era só até onde sua imaginação podia chegar. Sentiu uma gota de suor escorrer pela nuca. O cabelo sempre preso, como ele gostava, aliviava o calor.

O portão rangeu. Passos pesados por causa das botinas subiram os degraus. Foi esperá-lo no alto da escada. Tentou abrir um sorriso – não com os lábios, mas com os olhos. Esperou o beijo. Ele passou rápido, apenas olhou de relance. Ainda pode ouvi-lo trancar-se no banheiro. Era óbvio que seu dia não tinha sido bom. E não era culpa dela. Não podia ser. Era culpa daquele calor infernal, que sufocava qualquer cristão. Nem pode notar a lágrima que se formava, começando a embaçar sua vista.

Mas não se abalou. Preferiu pensar na lágrima como o suor que brota dos olhos quando o calor alcança a alma.


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(Historinha meia-boca pensada para a frase do post anterior)