domingo, 20 de fevereiro de 2011

Paulicéia desvairada

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Saí de agasalho, touca, calça jeans, meias longas e all star vermelho. Quase esqueci o guarda-chuva xadrez. Mas meu pai, de roupão e chinelas, enfrentou o orvalho congelado na grama para poder entregá-lo a mim.
Já eram  quase 7h, mas a manhã não tinha vindo. Ainda era madrugada. As luzes dos postes estavam acesas, mas não iluminavam muita coisa.
Desci a ladeira de casa sem poder ver mais do que vultos que estivessem a mais de três metros de distância. A neblina era tão densa que as vezes eu riscava o ar com os dedos para ver se conseguia cortá-la.
Sabe aquele vaporzinho que sai da boca porque dizem que nosso corpo está quente por dentro, aí a água que está no ar condensa quando a gente bafora?? É mentira. Sempre acreditei que aquilo era a fumaça da fogueira que meu estômago acendia porque estava com frio. Foi a Teresa - ou minha mãe preta, como ela gostava de dizer - quem me contou esse segredo. Eu era uma boba. Tinha sete anos e ainda acreditava na felicidade. Não acedito mais na felicidade, mas creio em fogueiras feitas pelo estômago.


Velha Paulista de guerra.


Enfim, são lembranças que eu tenho de São Paulo.
É a minha terra.
Engraçado, mas nunca consigo me inspirar pra falar dela.
Hoje descobri o porquê. Ela não me ama. Ela não ama ninguém. É uma velha rabugenta que cospe diariamente mais de onze milhões de pessoas nas ruas e as obriga a trabalhar, estudar, vagabundear ou pedir esmolas. Sem se importar com seus agasalhos ou meias longas de lã.
Na época, esse amor não correspondido me comovia muito. Me fazia sentir raiva. Eu me doava tanto...Caminhava pelas ruas mais obscuras, aguentava firme o cheiro de merda que brotava do Tietê, percorria estações em metrôs e trens lotados, via crianças cheirando cola e pedindo esmola...
Mas aguentei firme!
Eu me doei àquela cidade. Me ofereci como uma vagabunda. Daquelas que sobem e descem pela Augusta a procura de um "bacana".
Mas ela sempre me disse não. Me decepcionou, me cuspiu, me rasgou e vomitou.
E então eu desisti. Virei-lhe as costas. Sua puta mal agradecida!

Hoje, três anos longe dela, comecei a compreender. Ela é linda, mas detesta ser admirada. Como aquelas mulheres que encantam, te fazem rastejar por elas, comprar as jóias mais caras e ir a falência. Ela é linda, mas detesta ser amada. Mostra sempre sua pior face. Não corre o risco de ser só "mais uma".

4 comentários:

  1. Belo texto! Me fez lembrar de uma carta que certa vez escrevi. "Carta para minha puta": http://tangocalangotango.blogspot.com/2010/03/carta-para-minha-puta.html

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  2. Bonito mesmo. Boa percepção.

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  3. "Despeço-me de ti, sabendo que jamais a terei em meus braços, jamais me deliciarei com os teus beijos, ao som das inúmeras músicas feitas pra ti, cantadas pelos teus amantes, que dos quais jamais tive ciúmes."

    Acho isso lindo demais, Alex.

    :)

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  4. nossa, que mistura de identificação e vontade de gritar quando eu leio esse texto.
    é isso mesmo. quer dizer nem sei ao certo.
    tenho várias coisas pra compartilhar contigo, flor!
    é muito difícil pensar sobre a cidade. ela realmente não gosta de ser admirada. acredita que eu nao consegui dormir um dia depois de ver tanta gente na rua? que louco, nao me senti merecedora da minha casa.
    enfim. apesar dela nao gostar de ser admirada,
    tô num projeto de montar um espetáculo em cima das narrativas de pessoas que moram em um bairro da zona leste chamado Jardim Romano, esse bairro passou 3 MESES INUNDADO, com a água a 1m30 de altura, consegue imaginar?
    e voce acredita que encontrei, por acaso, 3 senhoras do RN?

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