Ele já havia lhe advertido várias vezes: "Não saia à rua sem mim". Ela sempre acatava, sem hesitar ou questionar o que aquele homem - o seu homem - lhe ordenava. Sim. Eram ordens, porque ele mesmo sempre acrescentava ao fim de cada frase imperativa: "Isso é uma ordem". E mesmo reclusa, dentro das paredes confortáveis do casarão enorme, os rumores de que ela era submissa demais para aqueles tempos chegavam aos seus ouvidos. Não se importava. Falassem o que bem entendessem. Ela sabia que tudo aquilo, aquele bigode recatado, aquelas botinas pesadas, aquela voz grave e impetuosa, eram artifícios para um bom convívio e que, sim, era pautado no amor porque era proteção.
Mas desde aquela noite já não conseguia dormir. A ideia da fuga, a ousadia da rua, dos olhares curiosos... Tudo lhe perturbava a ponto de tirar-lhe o fôlego. Sempre que a fuga surgia em sua mente quase infértil, um frio agudo subia-lhe pela espinha, eriçando ousadamente cada pelo de seu corpo. "É só uma rua." Não precisava fugir. Desaparecer para nunca mais voltar. Era só....a rua.
Estava ensopada de suor. A camisola branca de linho chegou a adquirir uma tonalidade amarelada. Ainda permanecia na cama; imóvel. Uma sensação de desconforto extremo a impedia de executar qualquer movimento, mínimo que fosse. Já era tarde. Podia perceber pela claridade excessiva que invadia as enormes vidraças do quarto e que a impediam de abrir completamente os olhos. Nem mesmo as grossas cortinas de veludo davam conta de impedir o assédio da luz. "Céus! É hora! Logo ele voltará para o almoço e nem mesmo falei com as criadas! As criadas....por que não me acordaram? Por que não chamaram?".
A casa silenciava como nunca. Precisava romper a densidade estática do ambiente que já chegava a sufocá-la. Levou uma das mãos até a nuca e sentiu os fios de cabelo ensopados pelo suor. Sentou-se de uma só vez. Precisou esforçar-se para se livrar do peso enorme das cobertas lançadas ao pé da cama. Os pés tocaram o chão de madeira impecavelmente polida e que estranhamente estava gelada. Insuportavelmente gelada. Agora, sem as cobertas, podia sentir o frio adentrar cada poro do seu corpo e quase congelar sua pele. Ainda assim havia suado como nunca durante a noite. Como se uma enorme revolução térmica tivesse ocorrido assim, no pequeno espaço das horas que determinam o período da noite.
Estava imersa em devaneios sonolentos quando ouviu a primeira nota. Abriu completamente os olhos e esperou ofegante. Então veio o primeiro acorde. Grave, um arpejo de violoncelo ressoou pelo corredor e adentrou a madeira maciça das portas do quarto. Lá dentro, ela aguardava estática. Num ímpeto, totalmente incrédula, correu até a porta, escancarando suas duas folhas. Mal terminou de abri-las e a música, numa intensidade crescente e quase sinestésica, soou melódica e harmonicamente impecável. Projetou seu corpo para o corredor quase que instintivamente, olhou ao redor, procurou nos quartos vizinhos. Nada. Apenas um som de frequência muito baixa, rompendo as barreiras do casarão e se instalando em cada cômodo insolentemente. A casa estava vazia. Chamou pelas criadas, que não apareceram. Desceu cambaleante a escada que levava até o salão principal e permaneceu estática, bem abaixo do imenso lustre de cristal que decorava o ambiente. Seu coração pareceu deslocar-se da cavidade torácica quando de súbito pode ouvir claramente não apenas um, mas vários cellos. O mesmo timbre, a mesma intensidade e ritmo, executando magistralmente o primeiro dos suítes de Bach! O casarão estremecia a cada nota... "Não é verdade! Só pode ser um sonho!". Soltou um grito desesperado implorando que parassem. Não surtiu efeito. Subiu os degraus para seu quarto tão velozmente que se não fosse o auxílio do corrimão, teria despencado escada abaixo. Trancou a porta com três voltas de chave e se embrulhou nos cobertores ainda úmidos de suor. Finalmente a música chegava ao fim, diminuindo gradualmente, até extinguir qualquer som que não fizesse parte do cotidiano melancólico do enorme casarão. "Céus! Até que enfim...". Suspirou de alívio. Não sentia mais calor, nem frio. Apenas o coração palpitando em um ritmo alucinante. O mesmo sentimento....a mesmo vontade....a ideia da fuga. O fôlego faltou-lhe, o frio subiu rápido pela espinha e os pelos se eriçaram. Era hora. Vestiu o primeiro casaco que avistou e com três voltas na chave destrancou a porta. Desceu a escadaria. Dessa vez com altivez e segurança, sem hesitar nem um passo. Com as mãos descobertas sentiu o metal gelado da maçaneta da porta de entrada enfeitada com dois vitrais floridos.
Atravessou a porta, desceu os degraus até o jardim, passou correndo por entre as árvores, abriu o portão, que rangeu por conta dos anos e dos íons de ferro. Deixou tudo para trás: Bach, jardim, árvores, portão e íons de ferro.Não teve tempo sequer de calçar-se, pisando nos pedregulhos do jardim. E finalmente alcançou a rua. Todos pararam observando a estranha figura, mas não se importou e continuou correndo.
Agora podia ouvir claramente a melodia profunda e poética do piano. Era a Valsa Minuto de Chopin! Seu fôlego se recompunha a cada contraponto frenético da batida cromática de seu coração.